- Canudos – Antecedentes – Aspecto original…
- …e crescimento vertiginoso
- Regime da urbs
- Polícia de bandidos
- População multiforme
- O templo
- Estrada para o céu
- As rezas
- Agrupamentos bizarros
- Por que não pregar contra a República?
- Uma missão abortada
- Maldição sobre a Jerusalém de taipa
Canudos – Antecedentes – Aspecto original…
Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinquenta capuabas de pau-a-pique.
Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, “armada até aos dentes” e “cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão” [ 47 ] de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.
Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o seu nome claramente se explica — tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893: tajupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas…
Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se, em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.
Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.
A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus…
…e crescimento vertiginoso
Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.
Diz uma testemunha [ 48 ]: “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda, nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.”
Assim se mudavam os lares.
Inhambupé, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará, Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos, forneciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.
O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.
A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; e, à medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoitada. Era a objetivação daquela insânia imensa.
Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.
Aquilo se fazia a esmo, adoidadamente.
Regime da urbs
A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.
Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos…
Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo exíguo, um atrium servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwan dos Peles-Vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.
Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam-se insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás (jacás de cipó) e os aiós, bolsa de caça, feita das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manipansos: Santos Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas, feias como megeras…
Por fim as armas — a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesados como montantes; as bestas e as espingardas.
Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até à “legítima de Braga”, cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca-de-sino.
Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio Conselheiro.
Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distancia era visível. Confundia-se com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza-Barrís, que o limitava do levante ao sul abarcando-o.
Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes, prolongando-se, ondeantes, até às serranias distantes, sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros pontos, de acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios e solitários. O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda…
A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este, dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por onde, no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro, que sucessos ulteriores denominariam da “Providência”.
Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.
Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga Capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão — Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras…
Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia pelo alto dos cômoros. A noite acendiam-se as fogueiras nos pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e, uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia plangente dos benditos.
Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção dos casebres. Estes, a princípio apinhando-se próximos à depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés das encostas breves até ao rio, começaram a salpintar, esparsos, o terreno rugado, mais longe.
Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam-se escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, eretas numa e outra margem do Vaza-Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam-se pelos cerros que se sucediam inúmeros seguindo o rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenteráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto. Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes.
Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam a distancia. Vindo do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros, as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.
Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se derivam para o rio Sargento, o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior, francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar-lhe as condições de defesa.
Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas, varejá-lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo, batendo todas as estradas, com uma bateria única.
Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera-as algum Vauban inculto…
Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a pique dos morros sobranceiros, torcia para norte feito um cañon fundo. A sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do Caipã; e ao sul pela montanha.
Canudos era uma tapera dentro de uma furna. A praça das igrejas, rente ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa. Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando-se a. pouco e pouco, em plano inclinado breve, feito um valo largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste, transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpitando, raras, o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa — como se vê — não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região belíssima, em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum enorme…
* * *
Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.
Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engravecidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.
O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades — jagunço.
População multiforme
De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais dispares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica — de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso, e de bonzo claudicante — estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.
Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra.
Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos.
E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus…
Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas conseqüências chegava a despi-los das belas qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.
O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas.
De todas as páginas de catecismo que soletrara ficara-lhe preceito único:
Bem-aventurados os que sofrem…
A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a absolvição plenária; e teriaga infalível para a peçonha dos maiores vícios.
Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão de somenos. [ 49 ] Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as escorralhas de uma vida infame caíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.
Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauto donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:
“Seguiu o destino de todas; passou por baixo da árvore do bem e do mal!”
Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bancklings entre os germanos. Eram legião.
Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial inteiro! — saiu, do banquete minúsculo, repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo.
Este regímen severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a enervação enferma dos crentes e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.
Canudos era o homízio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos Batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários…
Polícia de bandidos
Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a poeira, no dizer dos jagunços — viam-se diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinquência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas.
O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! Dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto!
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas, fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual da Bahia.
Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da Vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranhas para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.
Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.
Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.
Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.
Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém , exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que Ihes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões:
Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo mandou
Santo Antônio Aparecido
Dos castigos nos livrou!
Quem ouvir e não aprender
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará! [ 50 ]
Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivam-lhe, porventura, os últimos tragos da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.
O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência, que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.
O templo
Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.
A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga.
Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.
Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã, enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer o saco nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.
Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.
É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet…
Devia ser como foi. Devia surgir, mole, formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhes a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores…
Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis, cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.
Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andaimes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso.
Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.
Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.
Estrada para o céu
Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas facinadoramente traiçoeiras que levam ao inferno. Canudos, imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo — repugnante, aterrador, horrendo…
Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentando esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.” [ 51 ]
Chegavam.
Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas…
Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam no misticismo lamentável…
As rezas
Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava-se.
Difundia-se nos ares o coro da primeira reza.
A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos.
Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras.
Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de A. Conselheiro , a multidão repartia-se, separados os sexos, em dois agrupamentos destacados. E em cada um deles s um baralhamento enorme de contrastes…
Agrupamentos bizarros
Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas — êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição: as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas as cores…
Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas, trunfas escandalosas, de africanas madeixas castanhas e louras de brancas legítimas embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor. o toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador.
Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, impressionadoramente suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum angulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos benditos lúgubres como responsórios…
As reveses, as fogueiras quase abafadas. vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos os outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porem mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes , recidivos de todos os delitos.
Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento. Mas na há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis.
De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau e esvai-se-lhes contemplativo e vago…
José Venâncio, o terror da Volta Grande. deslumbra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, o fronte para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante de ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio.
Joaquim Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.
Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó…
A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.
O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais tarde.
Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila-Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos. O comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa.
No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.
E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.
Instituíra-o o Conselheiro, completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido.
Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo, contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um , por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas à meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia, adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas dos crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava à multidão um desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes, de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro…
Mas de repente o tumulto cessava.
Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro.
Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava…
Por que não pregar contra a República?
Pregava contra a República; é certo.
O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso.
Mas não traduzia o mais pálido intuito político; o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.
Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.
Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de Verzegnis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.
Os Perfectionistas exagerados rompem, então, lógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã…
Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.
Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos…
E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a carga de baionetas. reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras…
Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regímen, capaz de derruir as instituições nascentes.
E Canudos era a Vendéia…
Entretanto, quando nos últimos dias do arraial foi permitido o ingresso nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.
Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos ópimos, imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política, permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo — heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anti-Cristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvairos em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloquente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.
Copiemos ao acaso alguns:
“Sahiu D. Pedro segundo
Para o reino de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brasil ficou atôa!”
A República era a impiedade:
“Garantidos pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Elles tem a lei do cão!
Bem desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!
Casamento vão fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”
O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:
“D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento!
O Anti-Cristo nasceu
Para o Brasil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para delle nos livrar!
Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquelle pobre
Que estiver na lei do cão!” [ 52 ]
A lei do cão…
Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários.
Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados…
Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.
—
Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.
Uma missão abortada
Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela, apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho.
Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta.
Daniel vai penetrar na furna dos leões…
Acompanhemo-lo.
Seguido de frei Caetano de S. Léu e do vigário do Cumbe, frei João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio e abeira-se dos primeiros casebres. Alcança a praça desbordante de povo “perto de mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão etc.”; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de beduínos. Não se lhe entibia, porém, o ânimo blindado pela fortaleza tranquila dos apóstolos. Passa, impassível, por diante da capela, em cuja porta se adensam mais compactos agrupamentos. Envereda logo por um beco tortuoso. Atravessa-o, seguido dos companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos saem a vê-los, “ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções hostis”.
Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a sua ausência, ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora. Comoviam-no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até os dentes, e o quadro emocionante daquela Tebaida turbulenta.
Antolham-se-lhe novas impressões desagradáveis.
A breve trecho passam-lhe à porta oito defuntos levados sem sinal algum religioso para o cemitério ao fundo da igreja velha: oito redes de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos, ansiosos por alijá-las, como se na cidade sinistra o morto fosse um desertor do martírio, indigno da atenção mais breve.
Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse ao encontro dos emissários da Igreja. Permanecera indiferente, assistindo aos trabalhos de reconstrução da capela. Procuraram-no, então, os padres.
Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça. Atravessam-na, sem que o menor brado hostil os perturbe, e ao chegarem à sede dos trabalhos “os magotes de homens cerram fileiras junto à porta da capela” abrindo-lhes extensa ala.
Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristal” à qual era de praxe a resposta:
“Para sempre seja louvado tão bom Senhor!”
Entram no pequeno templo e acham-se diante de Antônio Conselheiro, que os acolhe com boa sombra; e, com a placabilidade habitual, dirige-lhes a mesma saudação pacífica.
“Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente” impressionaram grandemente os recém-vindos. [ 53 ]
Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante por súbitos acessos de tosse…
Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.
Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os seguiam a distância, pareceu-lhe que a oportunidade era de moldo para interpelação decisiva.
Era uma precipitação, sobre inútil, contraproducente. O insucesso sobreveio, inevitável.
…“aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diariamente se davam de oito a nove óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do sr. arcebispo, ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.”
Esta intransigência, este mal sopitado assomo, partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizaram os ritos bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.
“Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:
— Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro!”
Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável, a mansuetude — por que não dizer cristã? — de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale:
“Este os fez calar, e voltando-se para mim disse:
— É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados, porque V. V.Rev.ma há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Maceté, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender, porque reconhecia o governo, hoje não, porque não reconheço a República.”
Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima-Petri:
“— Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo. ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.”
Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero…
E continuou:
“É assim em toda parte: a França, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos, mas há mais de vinte anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades e às leis do governo.”
Fr. Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz:
“Nós, mesmo aqui no Brasil, a principiar do bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vós quereis sujeitar?
“É mau pensar esse, e uma doutrina errada a vossa!”
A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu pronta, a réplica arrogante:
“V. Revma. é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!”
Desta vez ainda o tumulto. prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento do Conselheiro que. voltando-se para o missionário, disse:
“Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão.”
Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam:
“… carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas c facões, de cartucheiras à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra.”
Assistia-a também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, “deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação que os maiores da grei confimavam com incisivos protestos.”
Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada.
Assim que, praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque “podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando, pela manhã, uma chávena de café”, tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica contradita:
“— Ora! Isto não é jejum, é comer a fartar!”
No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político pioraram as coisas. Começou intensa propaganda contra a pregação do padre maçon protestante e republicano, “emissário do governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e exterminar todos eles.”
Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com ela acirrando-a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subsequente o homicídio, e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na casa do enforcado espraiou se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar.
A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito vibrando e na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes sentir que deles não careciam para a salvação eterna.
Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões”, o resultado fora nulo, ou antes, negativo.
Maldição sobre a Jerusalém de taipa
O missionário “como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias” apelando para o veredictum tremendo da Justiça Divina…
E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dois sócios de reveses…
Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.
Atinge o alto da montanha. Pára um momento…
Considera pela última vez o povoado, embaixo…
É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se “ao Divino Mestre diante de Jerusalém.”
Mas amaldiçoou…
[ 48 ] Barão de Jeremoabo.
[ 49 ] Montanus ne prenait même pas la peine d’interdire un acte devenu absolument insignifiant, du moment que l’humanité en était à son dernier soir. La porte se trouvait ainsi ouverte à la débauche. — Renan, Marc-Aurèle, p. 215.
[ 50 ] Sílvio Romero — Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil. O escritor transcrevia aquelas quadras em 1879, precedendo-as com o seguinte comentário: “Era um missionário a seu jeito. Com tão poucos recursos fanatizou as povoações que visitou, que o tinham por Santo Antônio Aparecido.” Já em 1879!…
[ 51 ] Vide relatório de Fr. João Evangelista do Monte Marciano.
[ 52 ] Conservamos os originais destas quadras cuja ortografia alteramos em parte.
[ 53 ] Acompanhe-se o Relatório de Frei Monte Marciano.